Entre a Ciência e a Sapiência Os muitos dilemas da educação
“Pensa-se, comumente, que a tarefa de um político é administrar o país: pôr a casa
em ordem, construir coisas novas, consertar coisas velhas, cuidar das finanças, da
saúde, da segurança, da justiça, dos meios de comunicação, incluída, inclusive, a
administração dos meios de escolarização existentes, coisa sob a responsabilidade
do ministério da educação. Discordo. Existe uma diferença qualitativa entre aquilo
que fazem os ministérios administrativos e aquilo que o ministério da educação deve
fazer. A diferença entre eles é simples. Os ministérios administrativos cuidam do
hardware do país. Eles lidam com a ‘musculatura’ nacional. O ministério da
educação tem a seu cuidado o software do país. Ele cuida da ‘inteligência’ nacional.
Seu objetivo é fazer o povo pensar. Porque um país – ao contrário do que me
ensinaram na escola – não se faz com as coisas físicas que se encontram em seu
território, mas com os pensamentos de seu povo”. (Rubem Alves)
No caminho para o Planeta Educação passei pela escola onde lecionei durante uns 15
anos. Estava devendo uma visita rápida aos alunos que conviveram comigo até o final do
ano passado e, além disso, tinha que levar uns materiais que a direção havia requisitado.
Os materiais eram, na verdade, uma justificativa para poder encontrar os estudantes, meio
filhos, meio amigos, que tive que deixar para trás em virtude de outros compromissos
(estudo, trabalho).
Ao me encontrar com eles me dei conta de que ainda não dei aulas esse ano (na verdade
estarei começando o trabalho em sala de aula ainda essa semana). Conversei
rapidamente com todos eles para não atrapalhar o andamento das aulas em que estavam
envolvidos. Também acelerei a conversa porque a emoção sempre bate forte quando
estou em contato com eles, com aquele ambiente tão familiar, com a iminência de trocar
algumas idéias em aula...
“Durante anos consecutivos, nossos professores têm aprendido teorias científicas
sobre a educação, achando que é assim que se formam professores. Existe, de fato,
uma ciência da educação, como também existe uma ciência do piano. Mas a ciência
da educação não faz um professor, da mesma forma como o conhecimento da
ciência do piano não faz um pianista. Muitos professores maravilhosos nunca
estudaram as disciplinas pedagógicas. Se os alunos refutam diante da comida e se,
uma vez engolida, a comida provoca vômitos e diarréia, isso não quer dizer que os
processos digestivos dos alunos estejam doentes. Quer dizer que o cozinheiroprofessor
desconhece os segredos do sabor. A educação é uma arte. O educador é
um artista. Aconselho os professores a aprender seu ofício com as cozinheiras”
(Rubem Alves)
Esse reencontro me faz pensar exatamente naquilo que o grande mestre Rubem Alves
escreve na introdução de seu livro “Entre a Ciência e a Sapiência”, ou seja, na grande
paixão que tenho pela educação. Emoção gratuita, sem explicações, de onde surge toda a
beleza do mundo. Não tenho a mesma experiência de Rubem Alves, a quem admiro pela
franqueza e sinceridade em assuntos que a academia parece temer e que, por isso,
despreza.
Acho até que, guardadas as devidas proporções, todas as experiências, quando vividas
com ternura, profundidade e paixão merecem ser consideradas e partilhadas, mesmo
quando são provenientes de pessoas mais jovens, como é o meu caso. Mas, voltando ao
mestre e a sua obra, devo dizer que o longo caso de amor vivido por ele com a educação é
facilmente perceptível ao longo de todos os textos que compõem “Entre a Ciência e a
Sapiência” e também em praticamente todos os seus outros livros e artigos.
O mais interessante nisso tudo é que é muito difícil falar de um amor tão grande sem ser
piegas ou meloso. Rubem Alves consegue fazer isso de forma a atrair a atenção dos
leitores pela inteligência de seus argumentos e das histórias que conta. Não quer
comprovar cientificamente que a educação vai muito além dos livros, dos cálculos, das
fórmulas, dos fatos ou das concordâncias. Sabe que ela se estabelece na busca do
aperfeiçoamento, da sabedoria, mas não despreza o fator humano, o professor e o aluno.
Sobre cientistas e pescadores (As semelhanças não são mera coincidência...)
“Os pescadores-fabricantes de redes se organizaram numa confraria. Para se
pertencer à confraria era necessário que o postulante soubesse tecer redes e que
apresentasse, como prova de sua competência, um peixe pescado com as redes que
ele mesmo tecera. Mas uma coisa estranha aconteceu. De tanto tecer redes, pescar
peixes e falar sobre redes e peixes, os membros da confraria acabaram por esquecer
a linguagem que os habitantes da aldeia haviam falado sempre e ainda falavam.
Puseram, no seu lugar, uma linguagem apropriada às suas redes e os seus peixes, e
que tinha de ser falada por todos os seus membros, sob pena de expulsão”. (Rubem
Alves)
Sua coragem se revela em textos articulados em que se dirige ao já falecido Roberto
Marinho (que poderiam ser endereçados a seus sucessores) ou ao ministro da educação
(de onde retirei o trecho que inaugura esse artigo) falando do real compromisso que
deveriam assumir perante o país. Afinal de contas, estamos lidando com o “software”
nacional, ou seja, com a produção da inteligência necessária para realmente melhorar o
país...
Suas parábolas nos ensinam lições simples, mas cheias de sabor e autenticidade, como no
caso da comparação que tece entre professores e cozinheiros. Mesmo porque,
convenhamos, a aula é um momento todo especial em que temos que colocar nossos
alunos a todo instante diante de novas “provas” (relaciono essa palavra ao provar proposto
pelos grandes chefs da gastronomia), em busca de uma receita toda especial que lhes
convença, que lhes seduza para o que estamos ensinando.
Sua fala é tão pertinente que na continuação do livro encontramos um capítulo dedicado
especialmente aos livros e a leitura. Nesse ínterim é bom lembrar dos ensinamentos de
outro grande e especial educador brasileiro chamado Paulo Freire. Dizia Freire que temos
que aguçar nossos sentidos e ampliar o sentido de leitura, entendendo que ao realizarmos
essa prática não podemos nos restringir ao contato com as páginas de um livro, jornal ou
revista. Temos que ler o mundo.
“Os relojoeiros, ao fazer seus relógios, pensavam apenas nos relógios: queriam
fazer relógios perfeitos, bonitos, obras de arte. Relojoeiros pensam em relógios. Mas
os homens da ciência começaram a ter pensamentos diferentes dos pensamentos
dos relojoeiros ao olhar para os relógios. Os pensamentos deles começaram a dar
grandes pulos, pulos enormes; pularam dos relógios para o universo. Perceberam
que os relógios e o universo se pareciam. Eram máquinas análogas. O relógio era
um universo pequeno. O universo era um relógio grande. E foi assim que o relógio,
de objeto criado para medir horas, passou a ser, de repente, modelo do universo.
Assim, para compreender o universo bastava compreender os relógios”. (Rubem
Alves)
A leitura do mundo depreende a comunicação total, em que todos os sentidos estão
atentos, captando os sinais emitidos pela música ou pelo som das ruas, pela expressão
das pessoas tanto quanto a partir daquilo que falam, das imagens de um filme que
assistimos ou das notícias impressas no jornal diário ou mesmo dos relacionamentos que
estabelecemos com nossos amigos, irmãos, maridos, esposas, alunos,...
Rubem Alves vai além ao dizer que “Ler é uma virtude gastronômica” pois “requer uma
educação da sensibilidade, uma arte de discriminar os gostos”. O engraçado é que as
palavras sensibilidade e gosto são tão refutadas nos ensaios, artigos, estudos, teses ou
monografias produzidas pelas universidades...
Falando nisso, o livro “Entre a Ciência e a Sapiência” também discute a ciência e seus
caminhos (ou dilemas?). Relação estranha essa que se estabelece entre educação e
ciência. Para mim são como irmãs, nascidas do mesmo pai e da mesma mãe, o
conhecimento e a curiosidade, separadas no nascimento, que se reencontram alguns anos
depois e que parecem ter alguma incompatibilidade de gênio, de comportamento. O que
deveria ser um casamento bem ajustado, cheio de paixão e romance, é abalado por uma
comunicação precária, pela arrogância que brota de ambos os lados ou mesmo por
dogmas ou pretensões por parte de cientistas e educadores...
Penso que a ciência pode ser considerada uma linguagem, muito específica, muito própria.
Como a rede da metáfora contada por Rubem Alves em seus textos. Os pescadores que
aprenderam a usar essa ferramenta não parecem dispostos a partilhar esse conhecimento
com outras pessoas da comunidade. Fecham-se em suas próprias conchas e criam clubes
particulares. Dizem que muitas pessoas não teriam condições de entender direito aquilo
que pensam. Será? Ou será que, por outro lado, se fizermos uma socialização desse
instrumental não estaremos ampliando as possibilidades da pesca e alimentando um
número muito maior de pessoas a um custo muito menor?
Abrir os ouvidos é uma das dicas dadas pelo mestre Rubem Alves em seus textos
destinados aos cientistas. Escutar o som que vem do coração, da voz simples daqueles
que não são como eles, pescadores especializados. Há muita riqueza e sabedoria
brotando das experiências mais singelas...
Para terminar seu trabalho, Rubem Alves fala um pouco dessa confusa e apaixonante
relação dos homens com a tecnologia. Fala de relógios e de computadores. Lembra como
fomos enfeitiçados pelo tique-taque dos relógios a ponto de transformarmos nossa vida
numa corrida incessante atrás dos ponteiros dessa máquina incrível. Transporta essa
analogia alguns anos adiante e encontra paralelos entre essa estranha relação entre
homens e relógios e aquela que se estabelece a cada novo dia entre a humanidade e os
computadores. Será que algum dia George Orwell e Aldous Huxley terão razão? Espero,
sinceramente, que não...
Obs.: Orwell escreveu “1984” e Huxley “Admirável Mundo Novo” em que olham para o
futuro e discorrem a respeito de uma sociedade em que será difícil diferenciar homens e
máquinas. O sentimento terá sido praticamente sepultado entre nós...
Artigo de Joao Luis de Almeida Prado
Planeta Educação
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