4. Cuidado e educação na creche: Elementos indissociáveis e possibilitadores da inclusão da criança remanejada.
As
referências históricas da creche são unânimes em afirmar que ela foi
criada para cuidar de crianças pequenas, cujas mães saiam para
trabalhar. A Revolução Industrial, no século XVIII, na Europa, deu
partida ao emprego da mão-de-obra feminina, transformando e alterando
assim a maneira de cuidar e educar as crianças. Como os homens também
trabalhavam em indústrias têxteis, as crianças pequenas acabavam
ficando em casa sozinhas. Assim ocorreram: mortalidade infantil
elevada, desnutrição e acidentes domésticos, o que começou a despertar
atenção e sentimentos piedosos de religiosos, educadores e empresários.
Com a consolidação da CLT de 1943, as empresas com mais de trinta
mulheres trabalhadoras deveriam oferecer um espaço para a guarda da
criança durante a amamentação (Freitas, 2003).
Os fatores
históricos, sociais e econômicos determinavam as características do
modelo tradicional da creche. "Enquanto as famílias abastadas pagavam
uma babá, os pobres se viam na contingência de deixar os filhos (...)
numa instituição que deles cuidasse. (…) Tinha que zelar pela saúde,
ensinar hábitos de higiene e alimentar a criança. A educação permanecia
assunto da família." (Didonet, 2001, p. 12). Isto determinou a
compreensão de creche para crianças pobres bem como o seu caráter
assistencialista.
A
característica assistencialista da creche é hoje em dia ainda muito
forte, muito presente em algumas instituições e na consciência de
muitas pessoas. Noutras há objetivos educacionais explícitos como
proposta pedagógica fundamentada nas ciências pertinentes e com
profissionais qualificados.
Cuidado
e educação são assuntos polêmicos, não há como indissociá-los num
ambiente como a creche, "ao cuidar ou descuidar do outro, estamos
colocando-o em certa posição, dando-lhes certos sentidos, os quais
contribuem para construí-lo como pessoa." (Rossetti-Ferreira, 2003, p.
10). Quando a criança é alimentada, precisa tomar banho, dormir ou ser
medicada, são situações que soam como mero assistencialismo, requerendo
uma dinâmica um tanto mecânica e prática vista por alguns como pouco
importante; no entanto, são nesses momentos em que se instiga a criança
a ser autônoma, responsável, ativa, interagindo com os demais. É a
identidade da criança que está se formando, e as atividades diárias são
participantes deste processo, pois muito da cultura do grupo é
transmitida nesses momentos.
O
viés seguido na dinâmica diária de uma creche relaciona-se com cuidado
e educação. Cada sala, cada grupo e cada educador possui sua maneira de
conduzir essa dinâmica. Quando a criança é remanejada da turma, o novo
educador precisa ter maior atenção pois além de estar num novo
ambiente, a maneira como se é cuidado e educado diferem.
O
olhar estabelece uma troca de sentimentos de confiança (ou
desconfiança), manifesta carinho e compreensão, (ou indiferença e
raiva), desperta entusiasmo e alegria (ou inibe e amedronta); o toque
da mão do adulto pode transmitir segurança ou medo, entrega ou
retraimento (...) o ato de dar banho, trocar a fralda, vestir e pentear
o cabelo são gestos de comunicação humana entre o adulto e a criança
nos quais há uma troca profunda de sentimentos e, portanto, de
organização mental, de estruturação interior, de formação da
auto-imagem, (...) o modo como se encara de birra, de desagrado, de
curiosidade das crianças, como se busca a superação de comportamentos
de 'agressão' e como se promove a interação social determina o tipo de
educação que se está dando a elas; a fala do adulto inicia a criança na
linguagem, pois vai dizendo o que ela faz, o que as outras estão
fazendo, o que sentem, e, assim, vai mediando os atos por meio da
linguagem. Não há um conteúdo educativo na creche desvinculado dos
gestos de cuidar. Não há um ensino, seja um conhecimento ou um hábito,
que utilize uma via diferente da atenção afetuosa, alegre, disponível e
promotora da progressiva autonomia da criança." (Didonet, 2003, p. 9)
Nas
situações em que a criança interage com o adulto de referência e com as
demais crianças transparece o caminho para a inclusão dela na nova
turma. Observá-la com atenção, convidá-la para ingressar e interagir
com os pares em situações simples como ajudar a organizar os livros na
estante, guardar os brinquedos numa caixa, arrumar os talheres e pratos
na mesa, ajudar no banho de outra criança, enfim, dependendo da idade
da criança o educador pode encontrar inúmeras maneiras de construir com
o novo membro do grupo um ambiente acolhedor e capaz de incluí-lo
verdadeiramente, não somente integrá-lo.
Mittler
aponta uma grande diferença entre integrar e incluir. Utilizamos
equivocadamente essas duas palavras como sinônimos. Integrar comporta
um conceito de prontidão, ou seja, estar apto a algo para "passar a
diante". Incluir refere-se a mudanças que envolvem tanto o currículo
bem como a dinâmica pedagógica dos educadores. De nada adianta um
preparo com o intuito de integrar a criança no novo grupo se este novo
grupo não considerar todas as mudanças que ocorrerão com essa criança.
Essas mudanças podem trazer muitos sentimentos diferentes, como
ansiedade, medo, tristeza, frustração ou culpa caso não sejam
compreendidas.
A
criança nesse novo momento poderá se sentir mais segura com objetos
particulares como chupeta, ursinho, fralda para segurar na mão, etc.
Pode chorar durante bom tempo ou em determinados momentos, isolar-se do
grupo e brincar sozinha, fugir para a sala anterior ou pedir colo.
Essas situações requerem um certo preparo do educador, que muitas vezes
acredita que tudo isso que acontece com a criança seja manha para
chamar a atenção.
Os
momentos de acolher, dar colo, carinho e atenção podem soar ao educador
como puro assistencialismo, sem conteúdo educacional. No entanto,
enquanto eu acolho há um envolvimento tanto emocional como verbal.
"É
com o olhar do outro que nos comunicamos com nosso próprio interior.
Tudo o que diz respeito a mim chega a minha consciência mediante a
palavra dos outros, com sua entonação valorativa e emocional. Do mesmo
modo como o corpo da criança inicialmente se forma no interior do corpo
da mãe, a consciência do homem desperta a si própria envolvida na
consciência alheia." (Oliveira apud Backtin, 1985, p. 27.)
Durante
o acolhimento de uma criança há interação verbal, onde o educador
expressa através da fala palavras que possam trazer à criança um
sentimento de conforto, compreensão. A linguagem, a interação entre
sujeitos através da fala em qualquer momento dentro da creche, está
vinculada a questões educacionais. Não há como fragmentar a assistência
e educação neste ambiente. Não há como acreditar que o trabalho do
educador que presta assistência é inferior àquele que educa, porque
ambos os trabalhos são indissociáveis. As crianças que não freqüentaram
creches ou jardins-de-infância vão para a escola para serem educadas?
Elas chegam à escola nulas de educação?
Acreditamos
que a questão da assistência é considerada inferior à educação por
questões ideológicas produzidas na nossa sociedade. Muitas vezes esta
diferença se faz entre os próprios educadores, menosprezando o trabalho
de uns e enaltecendo o de outros.
Cuidar
e educar são elementos indissociáveis e possibilitadores de inclusão. A
maior parte do dia-a-dia de uma creche está centrada em momentos
práticos e de assistência por questões de direitos prioritários à
infância, como alimentação, higiene, descanso e momentos de lazer onde
as brincadeiras ocupam seu lugar. Seremos educadores que acreditam que
durante esses momentos não há nenhum conteúdo ligado à educação?
Seremos educadores que acreditam que os momentos de lazer, onde as
brincadeiras infantis se evidenciam, são situações que acontecem porque
as crianças não tem outra coisa para fazer?
Todas
atividades diárias que surgem na creche, a própria rotina apresentam
ligações com conteúdos educacionais. Desde a orientação de como se
portar à mesa até a construção de uma brincadeira coletiva no parque.
"As
brincadeiras em conjunto vem a ser a melhor experiência de
sociabilização, uma vez que para fazer parte do grupo é preciso
aprender gradativamente a tomar conta dos próprios impulsos de
hostilidade e desagregação, já que estes também podem ser identificados
pelas outras crianças."(Oliveira, V. B. 2001, p. 22).
Enquanto
a criança brinca com um grupo, os contatos são fontes preciosas de
crescimento e amadurecimento interior. Nas brincadeiras, não basta ter
uma idéia, ela precisa ser discutida e argumentada para convencer o
grupo. Nestas situações ela precisa aprender a ouvir e fazer-se ouvir,
discutir, pensar em equipe, decidir o caminho para o brincar. São nas
simples situações que se transmitem valores, crenças e costumes da
sociedade. São nesses momentos compreendidos como simples que se
constrói e reconstrói a história social subjetiva e coletiva de uma
cultura.
A
inclusão não é e nunca foi uma tarefa fácil, tanto por parte do sujeito
a ser incluso bem como do grupo que irá receber esse sujeito e dos
educadores. A tentativa é válida principalmente quando o educador
compreende, reflete e se coloca na posição do outro. Praticar uma
pedagogia consciente é posicionar-se diante desses momentos
conflituosos que ocorrem durante a prática docente de maneira a
resolvê-los, alicerçado numa educação comprometida com a história
social de cada membro que neste ambiente convive, produz e reproduz
história.
5. Caminhos pedagógicos da inclusão: A creche, um bom começo.
A
creche entendida como uma instituição educativo-profissional torna-se o
primeiro local onde a criança vivencia situações de inclusão. Desde os
momentos assistenciais (alimentação, higiene, descanso), até as
brincadeiras e atividades pedagógicas, a criança estará participando de
escolhas que incluem ou excluem objetos e/ou pessoas. Nossa sociedade
gira em torno dessas situações, devido as escolhas que fazemos a partir
daquilo que nos interessa.
Acredita-se
que sendo a creche um ambiente onde a criança inicia sua interação com
pessoas sem nenhum grau de parentesco, torna-se relevante um trabalho
pedagógico consciente, pois nossas ações podem deixar sentimentos
cristalizados. A maneira de conduzir a prática diária dessas
instituições poderá instigar o sujeito a tornar-se alguém seguro e
confiante ou retraído e sentindo-se incapaz.
A
questão do remanejamento é um momento importante, porém não é o único.
De nada adianta todo um preparo para a inclusão, se no decorrer do ano
houver desagregação neste meio. A isto é importante salientar que os
educadores precisam constantemente buscar conhecimentos, resgatando o
que sabem e construir uma pedagogia não revolucionária, mas, capaz de
reconhecer nas pequenas coisas, nos pequenos momentos uma ação
transformadora da prática, que, muitas vezes está calçada numa dinâmica
corroída pelo tempo.
Saber
pensar não é algo que se obtém por técnica, receita ou método. Saber
pensar não é só aplicar a lógica e a verificação aos dados da
experiência. Precisamos, pois, compreender que regras, que princípios
regem o pensamento que nos faz organizar o real, isto é,
selecionar/privilegiar certos dados, eliminar/subalternizar outros.
(...) Saber pensar significa, indissociavelmente, saber pensar o
próprio pensamento. Precisamos pensar-nos ao pensar, conhecer-nos ao
conhecer. É essa experiência reflexiva fundamental, que não é só a do
filósofo profissional e não deve estender-se apenas ao homem da
ciência, mas deve ser a de cada um e de todos. (Morin, Edgar, 1987, p.
111).
É
através das reflexões da nossa postura, diante do nosso trabalho que
podemos transformar nossas ações. É através dos questionamentos e
daquilo que nos intriga que há impulsionamento para a busca das
respostas. A dúvida reorienta o olhar do educador, se deixar que ela
morra seremos meros "cumpridores de horas trabalhadas", lavando as mãos
para o compromisso e vestindo a camisa da incompetência.
Os
profissionais de creche precisam ter em mente que neste local sempre
estarão lidando com questões que envolvem separação, conquistas e
progressiva autonomia das crianças. Estas questões giram em torno da
inclusão e conseqüentemente da exclusão. Respostas ou receitas para um
trabalho inclusivo na creche não existem, não é somente uma graduação
em pedagogia que trará subsídio para tal investida. O que precisa
ocorrer é um trabalho efetivamente em grupo com cada membro responsável
em fazer a sua parte. Esse trabalho em grupo não envolve somente
educadores, mas, toda a instituição e principalmente as famílias.
Um
grupo se constrói através da constância da presença de seus elementos
na constância da rotina e de suas atividades. Um grupo se constrói no
espaço heterogêneo das diferenças entre cada participante. Um grupo se
constrói enfrentando o medo que o diferente, o novo provoca, educando o
risco de ousar. Um grupo se constrói na cumplicidade do riso, da raiva,
do choro, do medo, do ódio, da felicidade e do prazer. (Grossi, 2001,
p. 65).
É
nessa dinâmica de comprometimento que emergem os caminhos de uma
pedagogia inclusiva na creche. Cada instituição possui uma política
única de trabalho, para tanto, o caminho pedagógico da inclusão é um
trajeto a ser construído por todos, ou seja, pais, educadores,
coordenadores, com o intuito de promover uma Educação Infantil de
qualidade e para todos, visando o desenvolvimento de uma infância
compreendida e valorizada no seu momento, nas suas particularidades.
Uma Educação Infantil de qualidade requer acima de tudo experiências
significativas para as crianças, pois estas determinam o intercâmbio
dela com o mundo, absolutamente necessário para a vida e o viver de
qualquer cidadão.
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